O QUE RESTARÁ DE HUMANO EM NÓS QUANDO FORMOS CYBORGS SINCRONIZADOS COM UM MUNDO DIGITAL?

cyborg_klein

Computadores, Internet, Emails, Wifi, Wikipedia, motores de busca, Networks, facebook, twitter, internet trolls, Google, Apple, Cloud, publicidade digital, microprocessadores, Amazon, Youtube, smartphone, NSA, PRISM, surveillance, tracking, DNA, engenharia e manipulação genética, Monsato, sequenciamento do genoma humano, Big Data, drones, profiles, Snapchat, Instagram, inteligência artificial, likes, share, satélites, steemit, Googlemaps, veículos autônomos, Siri, Alexa, digital fingerprint, Bitcoin, Blockchain, google glass, smart home, i-phone, chatbots, Hacker, realidade virtual, Cyborgs

Só de escrever esta lista foram ativados no meu cérebro diferentes sentimentos e cenários de um mundo cheio de robôs e óculos de realidade virtual, tudo monitorizado em sistemas centralizados que ciram e configuram um profil digital para cada ser humano.

É uma lista que reflete o alucinante desenvolvimento tecnológico e social dos últimos anos e que é fascinante e em parte animador. Mas estas palavras e os cenários que surgem na minha e talvez vossas mentes, deixam um travo amargo e acionam um desconforto nas minhas entranhas.

Não é só comigo. E quando se fala destes temas e esse desconforto surge, é habitual começar a debater as vantagens e as desvantagens da forma como o mundo está a mudar. No final, alguém remata com um comentário animador ou resignado e encolhe os ombros. Mas o desconforto não desaparece. E acredito que jamais desaparecerá. E porquê? Neste texto quero descrever um dos cenários que poderá ser o nosso futuro e responder a essa pergunta – porquê o desconforto?

O futuro tornou-se presente muito depressa. A ficção científica passou a realidade e de novo a ficção porque parte dos seus conceitos foram ultrapassados. Obviamente os protagonistas do Matrix e Star Trek não ouviram falar de tecnologia nano.

Eu ainda não fiz trinta anos e já me sinto velho e antiquado ao verificar que parte do estilo de vida e do mundo onde gostava de viver já desapareceram e que as crianças que agora crescem já não conhecem esse mundo a que me agarro.

Isso é parte do desconforto que nos causam os contínuos avanços tecnológicos. É a perda do que nos é familiar e afim e a impossibilidade de estar a par da novidades e de as compreender. Como não somos computadores, não podemos simplesmente fazer um update. Ainda não. Estamos num interminável buffering.

Se já é impossível tratar de todos os assuntos do dia a dia, como é que arranjamos tempo para nos informarmos se vale mais a pena confiar nos bancos ou investir as nossas poupanças em cryptocurrency como o Bitcoin? Sim, eu sei, teoricamente todas as novas tecnologias ajudam a fazer as coisas mais rápido. E é verdade. Mas também é verdade que, ainda assim, temos cada vez „menos tempo“. O número de horas por dia é o mesmo, mas temos menos segundos para realmente vivermos.

Ontem num jantar, ao conversarmos sobre projeto em que é implantado um chip no cérebro duma pessoa para aprender uma nova língua não encolhemos os ombros a dizer, pois, olha, é assim. Continuámos a debater.

Volto à pergunta. Porquê o desconforto? Porque nos sentimos sobrecarregados. Porque temos medo de não saber o que se está a passar. E depois? Porque é que isso nos causa um desconforto tão parecido ao medo? Ou talvez mesmo medo?

Imaginemos uma utopia futurística, em que a inteligência artificial e os robôs são usados para fazer todas as tarefas árduas e monótomas. Os seres humanos têm mais tempo para outras coisas. Têm acesso a tudo e a todos numa realidade digital. Como o ser humano é mais sábio já não há guerras e em vez de se deitar a comida fora, todos têm que comer e onde viver. Sem pressupor um sistema comunista, no qual todos são „exatamente iguais“ e possuiem (ou não) as mesmas coisas, como não há falta de recursos, ninguém tem de se preocupar em sobreviver. As necessidades básicas como a alimentação, moradia, contacto social, acesso ao sistema de saúde, à educação e à internet são garantidos. O resto são extras. Quem quiser, produz arte, quem quiser ensina, quem quiser inventa e contribuí para o desenvolvimento tecnológico (entre outros), etc.

Imagino que também neste mundo, com acesso instantâneo a uma realidade digital, seja impossível ao indivíduo estar a par de tudo o que vai mudando, mesmo das coisas que o rodeiam. Uma pessoa pode nem estar a par da existência de um novo produto (software ou hardware) que a pessoa ao seu lado no metro está a usar. Mas nesse cenário, isso já não me amedronta. Não tanto pelo menos. Em vez disso, a dimensão de possibilidades e áreas a descobrir ganha uma faceta divertida, desperta em mim o explorador, não o velhote que procura âmparo em objetos e conceitos inusitados.

Porquê essa mudança do desconforto e do medo para um outro sentimento mais agradável?

Talvez porque o desconforto que sentimos não seja um produto do futuro e de avanços tecnológicos. Talvez seja um produto do passado e do presente. E palavras como BigData, Google, Bitcoin, palavras que trazem consigo grandes dimensões, apenas ampliem esse desconforto.

Na conversa de ontem à noite falámos do Elon Musk, o visionário por trás da empresa Tesla e uma das personalidades que vem à ideia quando se fala de inteligência artificial. Musk alerta para os perigos da inteligência artificial e fala sobre possíveis cenários que ajudarão o ser humano num mundo onde a inteligência artificial é levada a um novo patamar e revoluciona o mundo e a vida. Ninguém pode prever as consequências de elevar a IA a um novo patamar, porque a partir daí ela superaria os limites cognitivos do ser humano, sendo capaz de aumentar de forma quase ilimitada, a sua capacidade de cálculo. Por isso Musk imagina que no futuro implataremos chips nos nossos cérebros, de forma a aumentarmos as nossas próprias capacidades cognitivas e a quantidade de dados que os nossos neurónios são capazes de processar e armazenar.

Ao jantar falámos disso e vociframos os quatro a mesma pergunta: porquê? Por que raio precisamos disso?

E concordámos que essa falta de uma razão legítima é algo que mesmo hoje em dia nos indigna. Vivemos em função de ganhar dinheiro, de ser produtivos, de estar a par, de acomular capital e bens, de consumir, de morrer a sofrer pela forma como vivemos e de deixar aquilo que sobreviveu ao lar de terceira idade, ao cancro, à demência, ao enterro. Não necessariamente porque não há alternativa. Mas sim porque as regras e mecanismos que regem a nossa sociedade e o nosso estilo de vida não têm como objetivo a felicidade – nem nossa nem de ninguém, diga-se de passagem (porque lucro e poder não são felicidade).

Aliás isso é tão notável que até parece ingénuo pretender que esse fosse o objetivo. Mas tendo em conta que já produzimos o suficiente para garantir a sobrevivência, qual é o sentido de qualquer outro objetivo que não seja a felicidade?

E no entanto, esse é o ponto de partida, o solo no qual germinam e crescem a maioria das inovações tecnológicas. E mesmo as que nascem com propósitos diferentes correm o risco de serem compradas e assimiladas por empresas como a Amazon, a Google, o Facebook.

Deste modo, por mais aparente que seja a constatação que „na vida o que interessa não é a nossa felicidade“, é importante, e esse facto é sempre (!) o pano de fundo no qual tudo acontece.

Vivemos num mundo em que tudo o que pode ser feito, é feito. Em que o „porquê“ só é pronunciado antecedendo „dinheiro, lucro, produtividade, emprego, segurança nacional, progresso“.

Mais uma vez: é simples e não é nada de novo. Mas é perigoso. A intenção é de tremenda importância.

Usando uma metáfora, os nossos meios tecnológicos determinam se vamos a pé, de burro, ou num drone futurístico, mas é o objetivo que determina se nos dirigimos para uma praia ou um pântano.

Não quero contestar que haja uma interação entre meios e fins. A internet e as redes sociais são um meio que torna possível uma mudança de mentalidade e uma reflexão sobre os fins, os objetivos. Sem dúvida. Mas temo que as mudanças que se estão a dar nas sociedade em relação à forma como vemos as coisas e que objetivos queremos atingir possam não acompanhar o ritmo com que a tecnologia avança e que, servindo-se desses avanços, a mentalidade focada no lucro e produtividade, que é o status quo, prevaleça.

Ensino português como língua estrangeira e sou um defensor de que, ao aprender uma língua, a prioridade deve ser a troca de informação (por outras palavras, a intenção), não a forma como a informação é transmitida. A prioridade deve ser o conteúdo, não a gramática. Porque o conteúdo é a única razão pela qual precisamos da língua e da gramática. Numa consideração extrema, se não houver conteúdo, nós abrimos a boca para dizer frases gramaticalmente perfeitas, mas que não querem dizer absolutamente nada e que são despojadas de propósito.

É esse o risco do caminho que percorremos.

Voltando ao Musk e à sua visão do futuro, que não é improvável. (Aparentemente já são feitas experiências com implantes cerebrais desse género, mesmo que se encontrem numa fase inicial).

Imaginemos que daqui a uns anos temos chips no cérebro, que nos permitem conceber mais pensamentos por segundo e torná-los mais complexos, que nos permitem gravar e ter acesso a mais palavras, línguas, imagens. Que nos concedem capacidades telepáticas. Que assim conseguimos usar o Googlemaps e o Google Translater com a mente, sem mover um dedo, sem pestanejar. Que nem precisamos do nosso telemóvel.

Para que usaremos isso?

Toda a gente acha que a vida devia ser mais vivida. Que devíamos „trabalhar“ menos e rir mais, sentir mais fascínio e partilhar mais amor.

Pessoalmente, sinto uma grande falta de espiritualidade no quotidiano. De verdadeiramente sentir que habitamos não apenas três dimensões, mas que há outras e que há forças maiores, mais vastas que nós, que não compreendemos. De sentir, acima de tudo, que a experiência do que é viver não pode ser compreendida com o raciocínio e que este não nos fará feliz. Porque o raciocínio não é o objetivo, mas o meio.

Mas nós partimos desse cenário em que os meios são os bens mais prezados e são considerados simultaneamente os fins. Os verdadeiros fins, a felicidade, a paz, a alegria, a sabedoria (em contraposição ao conhecimento) esses, perdem-se. Resumem-se a clichés romantizados e uniformizados em filmes, nos quais as pessoas procuram uma parte insatisfeita da sua natureza.

Partimos pois daqui, adicionando mais e mais meios, para daqui a umas décadas ou uns anos nos fundirmos com máquinas e software, coisas desprovidas de fins; misturando-as com os nossos neurónios, alterando talvez a própria forma como pensamos e o que sentimos.

Se as coisas daqui para a frente correrem assim, então pergunto-me se no fim não seremos literalmente uma máquina. Se o nosso objetivo e motivação são desprovidos daquilo que nos faz sermos seres humanos, e que não é a racionalidade (porque nisso a máquina bate-nos), mas sim a procura da felicidade, e se usamos meios desprovidos de fins, não será que no fim seremos capazes de alcançar esse objetivo e de nos tornarmos, nós próprios, os meios?

Não falo de um cenário em que incarnamos uma forma de escravidão humana de nova geração, repleta de infelicidade, depressão, cancro, alzeihmer, medo, raiva. Não. Trata-se de um cenário onde essas coisas já não ocupam um papel central nas nossas vidas.

Tomando um passo extremo, talvez seja isso que causa um desconforto tremendo quando ouvimos falar de networks, cyborgs, uma indústria automatizada, uma internet monitorizada, eficiência robótica e digital – é a pergunta: será que no fim, não seremos puro racíocinio e eficiência, eliminando a existência da felicidade e infelicidade, exilando as nossas características humanas (sejam elas agradáveis ou inconvenientes), tornando-nos, nós próprios, máquinas que são todas-poderosas no domínio dos meios, mas que não perguntam porquê?

Contra Corrente

charon_by_chaosfissure-d9t8eqw

Imagem: Chaos Fissure

 

 

Nado contra a corrente,

Que eu próprio criei.

Luto, sozinho.

Uma réstia de mim próprio,

Desesperado

Apenas a força do que sabe ser certo,

Contra as águas que se abatem sobre o corpo desolado.

 

Porque essas águas sou eu,

Mas não sou eu.

São o mundo que me rodeia e absorvo

E faz parte de mim.

E o mundo é um reino de desalento,

Sem princípios, sem verdade,

Acima de tudo sem amor.

Porque o mundo não é mais algo superior à soma das suas partes,

Mas menos que a soma das suas partes.

Porque o mundo é um padeiro rodeado de pães, que se esqueceu de como mastigar.

É perfume sobre suór,

São velas elétricas,

É um prédio cinzento e vazio

Que se pintou de verde,

De azul e amarelo e vermelho

E cores novas que se inventou

Para dissimular o seu vazio e fingir a vida que não contém.

 

Assim me derramo,

Em nome das comodidades do dia a dia.

Viva os vicíos infiéis,

Os hábitos ditadores,

As promessas da mediocridade

E a segura mediocridade da média.

Pelo que ouço e vejo e sei ser errado

Mas de tanto ouvir e tanto ver,

Esqueço e assim passa sem ser julgado.

 

E contudo

Em mim luta essa figura,

Esse salpico de cor no cinzento,

Essa canção no barulho,

Baixinha mas bela,

Verdadeira.

E diz:

Sou eu, és tu!

A tua natureza, a tua essência,

Os teus sonhos, o teu amor,

A única coisa e tudo aquilo que vale a pena ser.

 

E enquanto a arrasto pelas águas

Para a segurança,

Ansioso por escutá-la no silêncio do refúgio,

Pergunto-me se a poderei alguma vez salvar,

Sem inverter o curso das águas,

Sem mudar o mundo.

COMO PASSEAR: SOBRE OU À BEIRA DO FOSSO?

8c83222715b5778bf9b5daf4a2d5779e

Imagem de : Moebius
http://www.pinterest.com/asyaberezina/moebius/

 

Há várias maneiras de passear.

Eu passeio quase todos os dias e mais que uma vez por dia quando escrevo. No que toca ao passeio rotinário trata-se de um acto de ignição, estimulação e meditação. Faço sempre o mesmo percurso e gosto dele de dia, mas talvez um pouco mais de noite, com ruas largas vazias e silenciosas e um ambiente escuro, que não excita os olhos e deixa a minha mente divagar e enveredar por caminhos imaginários. Esse movimento do corpo, esse ritmo, na ausência de cenários novos e interessantes é o que cataliza a imaginação e torna o processo hipnótico, meditativo. Parece que estou a falar duma técnica ancestral indiana que só pode ser aprendida com um guru em cursos caros. Qual quê. É um percurso de cerca de trinta minutos por uma zona bonita e calma de Hamburgo e que nem atravessa uma única zona verde. Mas às vezes penso que tenho sorte por este processo me dar tanta satisfação. Chega a ser muito especial.

Enfim…

No penúltimo trecho do percurso, que vejo claramente como princípio do regresso a casa, caminho ao longo de um enorme monumento de tijolo. É um edifício estranho: antigo, bem conservado, imponente, alberga várias empresas. Pelos vidros de algumas entradas revela-me halls luxuosos, pelas próprias entradas e placas, campainhas e câmaras sugere exclusividade. Raramente vejo uma das pessoas que frequenta a sua barriga. Talvez porque a maioria entra e sai de carro na garagem subterrânea.

A meio da longa fachada surgem dois – chamemo-lhes – fossos (ou condutas), cuja função desconheço. São profundos – têm pelo menos dez metros – e em dois pontos vagamente iluminados por uma luz proveniente de janelas subterrâneas. Cobre-os uma grade grossa que acenta no chão.

Eu gostava muito de cada fosso. Quando não estava demasiado embrenhado nos meus pensamentos para os redescobrir, encaminhava-me para eles e andava sobre as grades, às vezes inconscientemente – devido à rotina. Mas outras vezes com um verdadeiro fascínio. Porque em plena cidade de Hamburgo, caminhava sobre um abismo onde me esperaria um destino macabro, talvez a morte. Só aquelas grades que estavam apoiadas ao chão num contorno com talvez dois centímetros de espessura me separavam de tantos metros cúbicos de vazio.

Às vezes passeio à uma da manhã. Se caísse lá dentro a essa hora provavelmente só seria descoberto ou os meus gemidos só seriam ouvidos por um dos misteriosos funcionários (ou advogados, consultores, empresários) de manhã. Mas como em muitas outras coisas, eu sabia que as grades estavam concebidas para serem seguras e percorria-as sem a mínima preocupação. Sentia-me grato por aquela oportunidade improvável, pela comichão que me fazia nas entranhas.

Até que um dia, acho que vinha alguém a meu encontro, embora isso seja relevante, pensei: mas e se, por qualquer razão, o metal cede num dos cantos e eu caiu por aqui abaixo?

A partir daí senti-me desconfortável. Ainda pisei e percorri a grade algumas vezes, com um pulso acelarado e ficava aliviado quando voltava a „terra firma“. Mas aos poucos deixei de o fazer.

É pena, mas talvez seja melhor assim. Porque teria sido uma maneira muito estúpida de arriscar a minha saúde. Pelo menos podia aceitar a minha decisão. O problema é que agora, não gosto daquela passagem, porque quando a percorro, olho para as grades e apesar de nem considerar a possibilidade de as pisar, uma parte de mim imagina com força como seria. De modo que de cada vez que vou passear, passo por ali e apesar de estar em chão à prova de tudo, os meus joelhos tremem como se tudo pudesse acabar num segundo.

Eu, o que me rodeia, o fosso, as grades – tudo permanece inalterado. Mas com um simples impulso que percorreu o meu cérebro, uma simples questão, tudo mudou.

Golpe

booooooom_blade_01

Imagem de: Michelle Blade

Há um reino de coisas fortes e indomáveis, de ideias e sentimentos puros que se querem manifestar. Esse reino encontra-se dentro de nós. Na verdade, como todas as coisas, está em todo o lado e em lado nenhum.

Em mim há um muro de silvas que bloqueia o portal para esse reino de coisas a querer sair. Os braços grossos de espinhos são tão densos que até pareço esquecer o que guardam.

Mas há dias em que oiço as coisas cantar e elas acordam em mim irmãs suas.

Abraço-me ao momento, agarro numa espada. Liberto o metal, molho-o de luz e ímpeto. Levanto os braços.

Um grito; um movimento, uma descida a pique. Um relâmpago metálico esventra as silvas. Desce-lhes abaixo. Abrem-se, atropeladas pelas coisas vorazes já ansiosas. Saiem em debandada. Como um tsunami que cavalga canos fora e rebenta com a torneira, elas inundam o meu mundo.

Um duche frio

 

78d5abcbc9c3287bf5a50a2188ab7772

Imagem: Purr Visions

 

 

Ontem tomei um duche frio.

Não é bem verdade: tomei um duche morno, só os últimos minutos é que foram de água fria.

Tive de girar o manípulo da temperatura espontaneamente, como se de súbito tivesse de me coçar, porque não há outra maneira de sair do quentinho.

Vai soar patético, mas enquanto que perante água quente me imobilizo, embrenhando-me no calor, receando a menor corrente de ar frio, quando a água me escorre fria em cima começo a mexer-me. A dançar mesmo. Produzo um burburinho irregular. Há que sublinhar: quando transitamos para o frio não podemos estar agarrados à fantasia do calor, o que só tornaria as coisas insuportáveis. Um duche frio não deve ser passado em estado de fuga iminente. Tem de ser apreciado a cada momento pela sua natureza trespassante e propulsionadora.

Porque esse frio (não exagerado) nos faz sentir vivos. Quanto mais nos habituamos a esse estado de desconforto contínuo, mais nos chama à atenção o calor do nosso cerne que contraria o frio exterior.

Eu gosto de metáforas. Talvez até seja viciado nelas, mas só porque não encontro melhor maneira de me explicar. Vou resumir o duche frio com mais uma, porque esse encontro resume ele próprio uma das essências da vida.

Nós estávamos tão sossegados, confortáveis, talvez felizes, no calor envolvente do útero, mas saímos cá para fora, para este mundo de desconforto, de altos e baixos. E não foi com certeza para procurar um substituto medíocre do ambiente que deixámos. Foi para nos depararmos com o frio, para despertarmos, para nos mexermos, para sentir como o nosso calor interior se destaca do frio que nos rodeia e para dançar, com burburinho irregular ou sem ele.

Inteiro

0b3249a557af310b4c9ae1c8052559bcab058449_m

Neste momento

sinto

que o mundo é inteiro.

É imenso.

É casa e é cave escura.

No silêncio da chuva,

espraiando-se no espelho que se perde

De lado o lado

Nos horizontes dos olhos,

É no seu silêncio tão próprio que ele ruge,

Todo o oceano, por ser gigante.

As vagas passam escuras

propondo-se a mim, aqui sozinho

uma figura nos planos movediços

líquidos.

Elas embarcam o precipício por baixo

Os céus de cima

As núvens turvas

debruçando-se com os dedos de mil braços translúcidos.

O mundo é inteiro

É infinito,

desfralda-se ao comprido,

arrastando-me a mente,

acolhendo-me na sua infinidade.

Neste momento

Vejo-me absoluto,

Pele minha submersa nas águas negras

Peito meu elevando-se a cada suspiro

Subindo-me do corpo,

no equilíbrio de duas forças.

Todos os abismos profundos escondem cumes monstruosos.

O que me dói

898c9a6bda962982e3b8a1cf2d64c195

Há coisas que sempre me doeram.

A grande ironia é que estas dores eram causadas por um mundo inventado. E como eu vivia neste mundo inventado, por mais que doesse, os inventores e os perpetradores deste mundo tão absurdo quanto falso, tão falso quanto aceite, tolerado, estabelecido, conseguiram convencer-me de que estas dores eram imaginação minha. Ou, se minimamente reais, então uma desfuncionalidade de um ser desfuncional, mas nunca, nunca algo digno de pôr em questão a funcionalidade e legitimidade das invenções.

Como um doente com algo que lhe corrói as entranhas e vai ao médico. Mas o médico nada encontra e em vez de admitir a sua impotência ou limitação, afirma que não há ali nada que diagnosticar (porque se não corresponde a uma norma, não existe). E porque outros médicos dizem o mesmo e porque o doente foi indoctrinado desde que tem memória, apesar da indoctrinação se excluir da própria memória, a acreditar na „medicina“ como quem acredita na religião e de confiar cegamente nas palavras vazias de um médico, como nas de um padre, ambos seres como o doente, mas fingindo-se tão superiores, o próprio doente convence-se de que as suas dores são algo a aceitar. E aceita. Aceita e aguenta. Até que morre e se verifica que padecia de um mal derivado de efeitos secundários de um dos medicamentos tão prezados na medicina, usados com uma certeza subentendida pelos médicos.

Chega de negar a existência destas dores.

O que me dói é ir a uma loja e tratar os empregados como empregados e sentir que eles próprios querem por vezes ser tratados como se fossem objetos de função informativa, e saber que a razão desse tratamento é um produto, um pedaço de plástico ou tecido ou seja o que for, que na sua ideia e no seu estatuto, não só provocou a destruição de algo na natureza e escravizou pessoas do outro lado do mundo, mas agora nos condena a interagir como criaturas robóticas.

O que me dói é entrar em situações em que sinto que as pessoas – escravizadas por um sistema criado por outras pessoas – lutam entre si com os meios mais vís por um pouco de poder, negando muitas vezes elas próprias a existência do sistema, cuja abolição as libertaria da necessidade da constante luta pelo poder de que actualmente precisam para se sentir minimamente humanas.

Todos nós somos seres infinitos. Cada um alberga um potencial diferente, mas cada potencial é infinito. Só podemos dizer que somos mais avançados que outros na medida em que realizamos esse potencial mais do que o fazem os outros.

E por isso, o que me dói realmente é passar pelas pessoas nas ruas e fingir que não me dizem nada, que não são mais importantes do que os edifícios ou as árvores, ou interagir de forma superficial e segundo as convenções que aprendemos. Igualmente nesse acto, estou a delimitar-me, a aprisionar-me a mim próprio numa pequena jaula, onde só me resta chorar ou rugir a quem passa do outro lado das grades. Fazê-lo é pisar o saber intrínseco de que passa por mim um ser infinito, é tentar comprimir essa infinidade num cubo com dimensões norma, tão pequeno que pode finalmente ser ignorado, desprezado, ou contado juntamento com os outros cubos. Tentar delimitar esse potencial infinito, essa luz que brilhará algures mesmo por trás das palavras mais rudes, é tão difícil e requer tanta energia que dói muito. Mas não só dói, como é impossível. E quanto mais rápido o reconhecermos, melhor.